'De tanto bater...'
Autor desconhecido
Tinha saído naquela manhã para tomar o seu pequeno-almoço tranquilamente ao mesmo tempo que lia o jornal. Tudo corria bem. O céu estava limpo e o sol aquecia as fachadas das casas e o chão húmido da noite. Estava a meio, quando o seu coração disparou num ritmo acelerado. Respirou fundo várias vezes tentando não dar importância ao facto. Não era a primeira vez. Já conhecia o processo. Em breve viria uma sensação de alívio quando ele acalmasse. Olhou vagarosamente à sua volta. Poucas pessoas presentes. E todas elas desconhecidas. Pensou para consigo que seria breve. Bastava continuar a respirar. Pouco depois, levantou-se decidida a andar um pouco tentando distrair-se do ritmo que ditava agora o seu corpo. Mas o ritmo não parava. Já tinha passado algum tempo sem que acalmasse. Pegou no telefone e ligou para a sua 'pessoa'. Do outro lado, ninguém atendia. Decidiu que não podia esperar mais. O ritmo durava há demasiado tempo. Meteu-se a caminho e dirigiu-se para o hospital pelos seus próprios pés. Bastava-lhe isso. Saber que ainda tinha força para chegar até lá. E o ritmo não abrandava. A respiração tornava-se mais difícil e surgiam os primeiros calores que confirmam a impotência de alterar o rumo das coisas. Entrou no hospital e imediatamente foi deitada numa maca. À sua volta, as pessoas continuavam a ser desconhecidas. Já não era importante agora. Tinha deixado de ser quem era para passar a ser um corpo que insistia em ditar as suas próprias regras. A chorar o seu cansaço, o desgaste e as suas dores mudas. Era apenas um corpo. Os afectos e as vivências que a constituíam ficaram lá fora, desamparadas. À sua volta, duas médicas e uma enfermeira tentavam saber o que se passava. O ritmo acelerado do coração impedia-a de se lembrar daquilo que era lá fora. Pouco depois, administraram-lhe medicação para acalmar o ritmo cardíaco. Avisaram para não se assustar. De repente, em segundos, sentiu uma onda invadir o corpo deixando de o sentir. E uma calma imensa. Assustadora. A respiração profunda e esforçada parecia ser o fio que a segurava. Já mais calma, não parava de olhar para o tecto e pensar na ideia que a vida, segundo dizem nestas alturas, passa à frente dos olhos. Que grande mentira! Não há tempo. O corpo apavora-se. E a mente assiste lúcida. E sem tirar os olhos do vazio, lembrou-se que não importa a quantidade, nem a intensidade, dos afectos que se possui lá fora. Não são eles que nos seguram aqui. Não é a falta que fazemos que legitima o tempo que ainda temos. E lá fora, ninguém à sua espera. Pouco importa. Na verdade, é sempre um tormento e um inferno para quem espera. E foi depois. Foi depois que começou a pensar no que a esperava cá fora. Talvez mais um dia. Talvez mais uma oportunidade. E o pavor escondido que o coração volte a dar de si. Rápido e sem parar. Afinal, ... de tanto bater quase que o seu coração havia parado... tal como aquele título do filme que não chegou a ver. E quando saiu ao fim de umas longas horas tinha quem a esperasse. Sorriu. Timidamente. Pela primeira vez desde o início. De outra forma não teria saído. Lembrou-se da importância que é termos sempre a nossa 'pessoa' ou 'pessoas'. Aquelas que escolhemos, e que se deixam escolher para terem a responsabilidade de saber de nós. Para estarem presentes quando tudo à nossa volta é desconhecido. Para dizerem de nós. Do que somos. Do que fomos...







8 Comments:
Um coração que tanto reclama deve ter os seus motivos.
Bjs x2
E do que ainda vamos ser...
Seja como for, ninguém merece estar/viver sozinho. Ninguém deveria.
Excelente texto este sobre a sensação da solidão/coração...
Um abraço
A.zinha
Eu bem queria que ele não tivesse voto na matéria... ;o)
Mts, mts beijos
Grafis
Como diria alguém que eu conheço, deveria ser proibido!
um abraço
Memory
Obrigada. :o)
outro abraço
Texto muito bonito, escrito com muita intensidade de emoções e com muita contensação ao mesmo tempo, parece-me. Retenho também a coragem de quem vivencia experiências solitárias, mas que sempre servem como prova de que somos capazes, de que sempre acabamos por descobrir a força imensa que existe em nós e que julgávamos só existir nos outros; de que, afinal, sempre existe alguém, mesmo que apenas um alguém, que está lá à nossa espera...
Exactamente.
Névoa
Em primeiro lugar, muito obrigada pelo elogio cuidado... pelo modo como sublinha a coragem na vivência solitária de experiências, que servem como testes à nossa capacidade de sobreviver, e do dever, acrescento eu, que temos de transformar isso num viver desprendido em relação a algumas coisas. E quanto ao alguém... prefiro que a vida me surpreenda. :o)
Samartaime
um abraço :o)
" De tanto bater, o meu coração parou".
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