Da luz...
M.
Por vezes, quando me ausento do lugar onde agora vivo, acontece-me sentir, no regresso, uma leve sensação de paz. E à medida que me vou aproximando dos limites da cidade, dou-me conta que essa sensação vai crescendo aos poucos. De forma tímida, como se não desejasse que eu desse conta da sua existência. E ao chegar, ao descer a pequena encosta que me leva quase ao peito da cidade, apercebo-me que estou a sorrir. Como se a cidade me esperasse repousada na sua quietude. Não nasci aqui. E também não foi aqui que cresci. Cheguei a este lugar da mesma forma que as coisas me vão chegando na vida. Acidentalmente. E, talvez, pela primeira vez na minha vida, surge-me com frequência esta coooisa... este sentimento que não sei definir cada vez que retorno. E vou realizando o percurso do costume. Aquele que me leva a casa... e confesso que não consigo resistir. Não resisto a trilhar aquele pequeno desvio que me faz deambular pelas ruas que me levam ao coração deste espaço. Como um vício apaziguador... como uma derrota demasiado doce que não merece luta pelo bem que deixa. E vou-me infiltrando, aos poucos, nestas ruelas como se beijasse um corpo adormecido. Lentamente. Memorizando cada pormenor. Perscrutando os seus segredos. A sua morna tranquilidade vestida de noite. E a cada passo que dou, é como se os olhos se enchessem e eu abrisse o peito a essa luz que tanto me fascina nesta cidade. E confesso, que não conheço nenhuma outra que tenha esta luz durante a noite. Nem mesmo Lisboa, outra amante perdida no tempo. É uma luminosidade tosca, opaca, morna. Sem aquela intensidade que revela segredos aos olhos despidos de vícios. E é essa luz firme... que se estende pelo chão frio e carente de passos. Pelos espaços jogando com a penumbra seduzida pela sua suavidade. Estende-se pelas fachadas das casas como se as beijasse e lhes guardasse o calor que tanto escondem no seu interior. Pelo verde húmido dos jardins que escondem gestos de ternuras consentidas. É essa luminosidade... de uma cor tremenda e com a qual desenho sonhos. É ela que vigia a quietude das ruas... o pulsar sábio que acalma a pressa da cidade.
É essa coisa... que não sei definir e que tanto me prende aqui. Não lhe quero dar nome. Para não ganhar espaço dentro de mim. Para que um dia não tenha de levar essa luz guardada nos bolsos, nem essa quietude colada aos olhos e de onde se venham a precipitar despedidas.
É essa coisa... que não sei definir e que tanto me prende aqui. Não lhe quero dar nome. Para não ganhar espaço dentro de mim. Para que um dia não tenha de levar essa luz guardada nos bolsos, nem essa quietude colada aos olhos e de onde se venham a precipitar despedidas.






13 Comments:
Cheguei a experienciar esse sentimento (ou quase esse sentimento) quando andava a estudar e regressava a casa no final da semana. Era como se pertencesse a um lugar, àquele lugar onde só havia paz e conforto e a alma não estivesse completa senão lá.
Tenho saudades desse tempo e saudades de sentir isso... e são estas coisas simples aquelas que nos trazem momentos de pura felicidade. Eu pelo menos acho.
És uma sortuda, acredita.
Tão lindo este post... mas tão lindo mesmo... talvez porque esta cidade me provoque um igual sentimento, e porque escolheste as melhores palavras para o descrever.
*
Com esse olhar e essas pegadas...quem fosse cidade, linda (suspiro) (sorriso). Chavela.
O sentimento que me acompanha quando regresso de férias é exactamente o mesmo. O cheiro, o meu quarto..., enfim o meu espaço.
Excelente post!!!!
Acho que apenas acrescentaria (ao imensamente descrito [e que só por quem assim seria] que é também a minha cidade) que às maravilhas deste espaço se deveriam juntar os "sófás", os brigadeiros e os Café Mocha que tornam qualquer altura numa pausa irrepetivel... ;-]
Beijos, M.zinha, "montes" :o)
O que fascina neste texto (creio que até mais do que a cidade nele tão delicadamente descrita) é, sem dúvida alguma, a ternura, o carinho e até mesmo o amor que emanam de cada frase concluída. Existe uma espécie de enamoramento: uma aproximação com alguma distância para melhor admirar,um cuidado com as palavras para se ser justo e verdadeiro na apreciação, um caminhar lento para prolongar a presença da companhia. Excelente! Que essa luz te ilumine e te aqueça!
Grafis
É isso... a sensação que só ali a alma está completa. Obrigada. :)
E sim, assumo-me como uma sortuda. :)
EyesWideOpen
Muito obrigada pelas tuas palavras. Mesmo. :)
um abraço
Chavela
(... sorriso grande... com os olhos postos no chão)
... posso dizer que... quem fosse cidade, teria certamente a minha contemplação. ;)
um abraço
EstrelaMinha
Obrigada! :)
Mczita
Ai... lá tinhas que vir tu com os ditos brigadeiros e o café 'moka' que me tiram do sério e me rebentam c'a linha, melher!! ;)
beijos, aos 'montes'
Contraluz
Muito obrigada pelas suas amáveis palavras. Pelo cuidado com que pinta o modo como as minhas ficaram a ressoar no seu espaço. Pela delicadeza com que caracteriza o dito do enamoramento... e quase que apostaria que me conhece.
E sim, prolongarei a presença dessa luz enquanto me preencher desta maneira.
Have you got a story for me?
rsrsrs
Há cidades que nos envolvem com tanta luz que quase nos cegam.
Sei o que queres dizer. Senti o mesmo quando vivi em Paris. Hoje estou dividida entre Lisboa e Paris pois penso que cada uma tem o seu charme especifico e a sua luminosidade.
um abraço
«Não mais a natureza ou o Estado, ou uma qualquer religião a decidir sobre a vida e o futuro das mulheres, mas elas próprias.»
Madalena Barbosa
Faro, 1942 - 2008 , 21:FEV:08, Lisboa
Obrigada por (d)escreveres tão bem o que se sente em Paris.
Um Abraço
Mots a la Bouche
Samartaime
Apreciei.... :))
Espero ter sempre ! :)
um abraço
Maria Papoila
:)
Mas é um 'cegar' que nos encanta e nos faz crescer para a vida !
Memory
Vivi uma década em Lisboa. Mas nasci para a vida em Paris. Eu não estaria dividida. ;)
Talvez um dia explique porquê...
um abraço
Mots a La Bouche
Diria que esse 'nome' é sugestivo e próprio de quem muito lê e vive pelas linhas e páginas de livros.
Li o teu post... e gostei do nome do blog.
Espero, sinceramente, que consiga realizar o que tanto anseia.
E para mim, Paris é tudo isso que descreveu... é a cidade, a luz, os boulevards, os cafés, a forma como se vive a cidade... e o amor vivido por inteiro.
um abraço :)
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