Do nascer...

Deixa-me dizer-te como em mim cresce a vontade sorridente e desprendida de mandar toda esta minha maneira de ser e preocupação ingénua às urtigas. Como me cansa saber a esgrimir-me em palavras para dizer o tanto ou pouco que sou. O que alguma vez fui. E o quão imenso é ainda o que posso vir a ser. Deixa-me dizer-te... como descubro em mim que não é para ti que escrevo e nem tão pouco para alguém. Escrevo somente porque a vontade das palavras, que me assolam a mente, ganharem vida é maior do que qualquer desejo que possa existir em ser entendida. E como vou descobrindo o sentido do escrever para mim. Tal como fazia no início...

E sei agora... que se alguém pudesse subir os montes e dobrar as esquinas onde tantas vezes deambulei a encher o olhar do tanto que me faltava... se alguém percorresse cada passo do meu caminho perdido por entre ruas e cidades vazias de gente e quilómetros medidos a horas... se alguém ouvisse as músicas que divagam na minha memória pairando como fantasmas sobre os momentos fotográficos e inconvenientes que o raio do coração tirou... se alguém lesse todas as frases sublinhadas dos livros que leio e trago debaixo do braço da 'memória poética' do Kundera e visse as minhas notas e emoções coladas às páginas... E mesmo que alguma vez conseguisse resumir a minha vida a um mero livrinho de emoções desenhadas a gouache... Nem assim entenderia o peso de cada segundo e minuto de mim no tempo em que estou a ser junto de...

E nisto, só o Pessoa soube mostrar com exactidão o sentido do que há a retirar da vida: que os outros apenas devem ler na nossa lápide a data de nascimento e da morte. Tudo o que aconteceu entre essas datas, só a ele, como a nós nos diz respeito.